DIOCESE DE BARRA DO PIRAI – VOLTA REDONDA
PARÓQUIA SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA – BARRA MANSA
FORMAÇÃO PARA MINISTROS EXTRAORDINÁRIO DA
PALAVRA
4.º
ENCONTRO; TEMA: A Missão da Igreja: Perspectivas Eclesiológicas
ASSESSOR: Pe. FLÁVIO LUÍS
DATA: 29/08/2014 LOCAL: SALÃO
PAROQUIAL HORÁRIO
19:30Hs – 21:00Hs
A Missão da Igreja: Perspectivas Eclesiológicas
É
fato a afirmação de que vivemos um tempo de profundas mudanças. Assim, é
justamente diante do contexto da grande e radical mudança de época, que a
Igreja deve olhar-se a si mesma com olhar crítico e de esperança, para trazer à
luz pensamentos, práticas e estruturas que apontam para uma necessidade de
conversão.
A Igreja é chamada a
situar-se no novo contexto e assumir os novos desafios oriundos dele. Os
desafios são inúmeros. Isto obriga a Igreja a vir a ter uma constante atitude
de humildade e a reconhecer a complexidade da realidade sem se esquivar dela,
por mais dura e desconcertante que seja.
1.
A teologia pós-conciliar insiste no
fato de que a Igreja não deve mais
configurar-se como uma instituição baseada sobre um eixo de contraposição clero
e laicato – tributário de uma eclesiologia que se funda na distinção e
separação de duas categorias desiguais de cristãos –. O Concílio Vaticano II
afirma que todos pertencemos ao único Povo de Deus e dentro dele temos a mesma
dignidade, o mesmo valor aos olhos do Senhor e idêntica vocação à santidade. É
preciso caminhar na superação da distância entre os membros do corpo do Senhor
para que a comunhão na Igreja seja cada vez mais uma realidade, e reconhecer
que há uma Igreja toda ela co-responsável, dada a radical igualdade em
dignidade de todos os ministérios. A Conferência de Aparecida valoriza o
laicato tanto na inserção no mundo (DAp, 210), quanto no interior da Igreja
(DAp, 211), destacando sua importância como elo de ligação entre a Igreja e a
sociedade (DAp, 497a). Esta proposta insiste no fato de que a Igreja se
encontra dentro do mundo e, por isso, deve participar das realizações e das
dificuldades do ser humano moderno. Esta consciência permitiu à Igreja
descobrir novos campos pastorais e novos temas para sua reflexão, como por
exemplo, a preocupação com a dignidade da pessoa humana e o aspecto
antropológico da realidade. Onde a vida estiver fragilizada, ameaçada, a Igreja
latino-americana é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça
entre os povos.
2. O cristianismo se reporta a Jesus de Nazaré e este
proclama que veio para que todos tenham vida e vida em abundância (cf. Jo
10,10). Isto não pode ser negado. E quando a realidade se apresenta em
contradição com a promessa, não basta apenas denunciar e condenar e nem apenas
indicar uma nova utopia, mesmo quando necessária para manter acessa a
esperança. É preciso estar presente e agir. Eis o grande desafio que se
apresenta: voltar à Igreja que Jesus queria e os apóstolos nos deixaram (cf.
DAp, 31). Uma Igreja que assume a realidade com seus clamores e suas
debilidades. Fundada na Palavra e no Espírito para viver perto do povo.
Sacramento libertador do Reino. Comunidade de Deus sem fronteiras. Orante,
fraterna e solidária. Ministerial, dialogante, profética e pobre. Respeitosa da
pluralidade. Que valoriza os dons e ministérios que cada um recebeu do
Espírito. A Igreja hoje, mais do que nunca, precisa descentrar-se de suas
questões exclusivamente internas e sintonizar-se com as grandes aspirações da
humanidade. Desafios tais como processos de exclusão, urgência de uma nova
ordem internacional, direitos humanos, emancipação da mulher, ecologia humana,
etc., dizem respeito também ao Evangelho. A fraternidade universal e uma
humanidade “com vida em abundância” é a vocação missionária à qual o
cristianismo está chamado a ser sinal e sacramento.
3. A
missão da Igreja é evangelizar (cf. DAp, 30-32). Ela busca cumprir sua missão
seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes, ensinando o caminho da
vocação de discípulos missionários. Este processo mostra que não se pode ser
cristão fora de uma comunidade. É por
meio das comunidades que Jesus Cristo se torna presente e atualiza sua missão
salvífica. A Igreja da América Latina, no interior de um mundo marcado pelo
individualismo com a hegemonia do neoliberalismo, é chamada a continuar
contribuindo com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, fará isso
com a criação e fortalecimento de comunidades eclesiais consequentes com a
prática histórica de Jesus de Nazaré, assumindo a opção pelos pobres e
excluídos, uma vez que “toda autêntica missão unifica a preocupação pela
dimensão transcendental do ser humano e por todas as suas necessidades
concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece” (DAp,
176).
4.
A Igreja, no contexto atual, tem a responsabilidade de apresentar, de modo
claro e significativo quem é o Deus em quem acredita e sabe ser o sentido único
para a vida. É por isso que a Conferência de Aparecida convoca todos os
seus membros a se pôr “em estado permanente de missão” (DAp, 551) para,
justamente, tornar realidade esta proposta.
Contudo, todo esse
grande chamado à missão só terá sentido se houver um comprometimento em favor da vida em todos os seus âmbitos e se a Igreja
se esforçar por assumir visivelmente o processo de conversão pastoral em suas instâncias pessoais, comunitárias e
institucionais. Isso implica, entre outras coisas, criar dentro dela
espaços de maior autonomia para as subjetividades e de acolhida das diferenças;
promover com firme decisão as condições adequadas de missão permanente,
especialmente nas relações e espaços intereclesiais comunitários, para que a
Igreja possa dar um testemunho cristão digno de fé.
A conversão pastoral
solicitada por Aparecida aponta para “a setorização (das paróquias) em unidades
territoriais menores, com equipes próprias de animação e de coordenação que
permitam maior proximidade com pessoas e grupos que vivem na região” (DAp,
372). É urgente fazer da paróquia uma rede de comunidades, como o caminho
fundamental para a ação evangelizadora em nossos dias (cf. DAp, 99e; 170-180).
Na América Latina e no Caribe, referencial de comunidade, estruturalmente com
espaço para a autonomia das subjetividades e das diferenças, de tamanho humano,
são as Comunidades Eclesiais de Base
que, como ressalta Aparecida, retomam o que há de mais antigo na Igreja, a
inspiração das primeiras comunidades cristãs; ao mesmo tempo, representam o que
há de mais novo, isto é, as orientações do Vaticano II e das Assembleias Gerais
do CELAM (cf. DAp, 178). Todavia, como resposta às exigências da evangelização
junto com as CEB’s existe outras formas de pequenas
comunidades (cf. DAp, 180). Neste reconhecimento, vários desafios são
apresentados diante do fenômeno das novas comunidades. Existem inúmeras outras
tentativas para concretizar este ideal. São iniciativas que giram em torno de
movimentos, grupos de vida, de oração e de reflexão da Palavra de Deus.
Atualmente, contata-se e se reflete a realidade de comunidades de adesão
afetiva ou por interesse e não tanto em função do território, comunidades
marcadas pela fluidez de vínculos e pelos ajuntamentos pontuais. Esta mudança é
grande, urgente e mesmo irreversível (cf. DAp, 365).
5.
Um desafio complexo que se
apresenta é a renovação da instituição.
As estruturas são um elemento fundamental da visibilidade da Igreja, pois
afetam decisivamente seu caráter de sinal ou sacramento. É preciso analisar até
que ponto sua visibilização institucional, a configuração histórica,
transparece a experiência originária no contexto atual, dando suporte a uma
missão e identidade renovadas. Das
estruturas em função da missão, deriva uma ecclesia semper reformanda (cf. LG, 8; GS, 43). A Igreja precisa
ser flexível em suas estruturas, condição essencial para caminhar acompanhando
o dinamismo do Espírito e da história.
O atual momento
histórico-social em que a Igreja está inserida, a atual conjuntura, nos convida
a ultrapassar o horizonte da uniformidade pastoral e ingressar, com maior
empenho, numa pastoral diversificada e, por certo, articulada, sem a qual
perderemos muito de nossa força testemunhal, interpeladora e propositiva em
vista do Reino de Deus. Refletindo sobre o perfil do agir missionário, a
Conferência de Aparecida assume com toda clareza a insuficiência da chamada pastoral de conservação (DAp, 370).
Chegando até a afirmar que algumas formas de fazer pastoral, formas que até
deram certo em outras épocas, por não mais responderem aos anseios de nosso
tempo, tornam-se causa de abandono da Igreja (DAp, 225). Daí o imperativo de
uma corajosa busca de novos caminhos para evangelizar e formar comunidades,
coragem que exige até mesmo o abandono de “estruturas ultrapassadas que já não
favoreçam a transmissão da fé” (DAp, 365-366).
A fé cristã nos introduz no seio do Mistério Pascal,
marcado pelo êxodo e a exigência do nascer
de novo, em meio à realidade de um mundo, cada vez mais dinâmico, complexo
e plural. Assim, é decisivo, para o atual momento histórico, discernir os
desafios de uma mudança de época que já se está processando entre nós e esboçar
como Igreja uma resposta profética, fiel e criativa. O que teremos que fazer
agora? Primeiro: superar confusões, medos e desconfianças estéreis. Segundo:
formar os sujeitos (pessoas e comunidades) capazes de reconstruir a identidade
da Igreja. Os textos e a teologia não mudam a Igreja. Esta se transforma quando
existem mestres e profetas, ministros e leigos, movimentos e organizações,
capazes de reconstruir estruturas e ministérios novos, novos modelos de Igreja
e novos espaços onde seja possível uma profunda autocrítica da Igreja e uma
reprogramação de novas atividades missionárias. O que está em jogo é a “vida de
nossos povos”, que se encontra ameaçada e ferida, e o cumprimento do mandato do
Senhor Jesus de evangelizar. Por isso, urge uma autêntica e profunda conversão
pastoral que possibilite encontrar caminhos de abertura ministerial e
compromisso profético para corresponder às necessidades da Igreja servidora em
estado permanente de missão que defende e acolhe a vida que o Espírito faz
nascer em nosso mundo.
IGREJA
– MISTÉRIO E SACRAMENTO: A ECLESIOLOGIA TRINITÁRIA DO VATICANO II
A chave para a compreensão da mensagem eclesiológica do
Concílio, reside na leitura trinitária da Igreja: “A Igreja universal aparece
como o ‘povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo’”.
A Igreja, tal qual apresentada no capítulo I da Lumen Gentium, vem da Trindade,
estrutura-se à imagem da Trindade e se dirige para o acabamento trinitário da
história. Vindo do alto como o seu Senhor, plasmada pelo alto e a caminho dele,
enquanto “o Reino de Cristo já presente em mistério” (LG, 3), a Igreja é na história, não sendo, porém,
redutível às coordenadas da história, do visível e do disponível.
Esta intuição fundamental, extraída do testemunho da
Escritura e da reflexão de fé dos Padres, teve desdobramentos na constituição De Ecclesia (Sobre a Igreja), que
examina subsequentemente a origem, o presente e o futuro da Igreja à luz da
Trindade Santa.
- De onde vem a Igreja?
O que é? Para onde vai? > são as três
perguntas-chaves, às quais o Concílio quer responder a partir da origem, da
forma e da destinação trinitária da comunidade eclesial.
A origem trinitária da Igreja é apresentada quando se
descreve a economia da salvação: o fim do desígnio livre, gratuito e insondável
do Pai é a elevação dos seres humanos à participação na vida divina, na
comunhão da Trindade: “O eterno Pai, por decisão inteiramente livre e
insondável da sua bondade e sabedoria, criou o universo, decretou elevar os
homens à participação da sua vida divina (...)” (LG, 2).
A unidade dos seres humanos com Deus e entre si,
adquirida pela obra reconciliadora do Verbo Encarnado, atua-se historicamente
na Igreja e se consumará na glória: “Aos que acreditam em Cristo quis
convocá-los na santa Igreja, a qual, já prefigurada desde a origem do mundo e
preparada admiravelmente na história do povo de Israel e na antiga aliança, e
instituída ‘nos últimos tempos’, foi manifestada pela efusão do Espírito, e
será consumada em glória no fim dos séculos. Então, como se lê nos santos
Padres, todos os justos, a começar por Adão, ‘desde o justo Abel até ao último
eleito’, serão congregados na Igreja universal junto do Pai” (LG, 2).
Aqui se entende a Igreja em sentido amplo, segundo um
universalismo de origem paulina e muito difundido no pensamento patrístico. Não
se quer negar a necessidade da salvação. Quer-se afirmar que ela, em sua forma
visível e histórica, é o sacramento – isto é, o sinal e o instrumento escolhido
– do desígnio salvífico de unidade, que vai da criação à parusia.
A Igreja é, então, a participação histórica na unidade
trinitária, a realização iniciada sob o véu dos sinais da salvação que brota da
iniciativa divina, mistério ou sacramento da “íntima união com Deus e da
unidade de todo o gênero humano” (LG, 1).
O desígnio divino de unidade manifestou-se na plenitude
dos tempos com a missão e a obra do Filho: Ele inaugurou na terra o Reino dos
céus, do qual a Igreja é a presença “in mysterio”, isto é, o sinal e o germe
que, ao mesmo tempo, revela e esconde, crescente graça à potência de Deus em
direção ao acabamento (cf. LG, 3). Este começo e crescimento são ambos
significados pelo sangue e pela água que manaram do lado aberto de Jesus
crucificado (cf. Jo 19,34); e são preanunciados pelas palavras do Senhor acerca
de sua morte na cruz: “E quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim”
(Jo 12,32). Na água e no sangue que jorram do Crucificado, os Padres viram os
sacramentos do batismo e da eucaristia: é a ideia de que a estrutura
sacramental da Igreja deriva do Cristo pascal.
Se ao centro do desígnio do Pai está a missão do Filho,
indissoluvelmente ligada à Igreja, do mesmo modo, ao centro da missão do Filho
está o seu mistério pascal, do qual nasce a Igreja como comunidade dos
reconciliados em Cristo com Deus, e entre si. Esse mistério não é mero
acontecimento do passado: torna-se presente no memorial da eucaristia, para
reconciliar os seres humanos no hoje da própria história. A Igreja, que celebra
a eucaristia, dela nasce como corpo de Cristo na história.
A missão do Filho culmina com o envio do Espírito, que
torna possível o acesso ao Pai por meio do Filho. Assim como o Pai, através do
Filho, veio ao ser humano no Espírito, o ser humano pode, doravante, no
Espírito e pelo Filho, ascender ao Pai. O movimento de descensão possibilita o
de ascensão, num circuito de unidade, cuja fase eterna é a Trindade e cuja fase
temporal é a Igreja.
O Espírito dá a vida. O Espírito “habita na Igreja e nos
corações dos fieis, como num templo; neles ora e dá testemunho de que são
filhos adotivos. Leva a Igreja ao conhecimento da verdade total, unifica-a na
comunhão e no ministério, dota-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos,
com os quais a dirige e embeleza. Com a força do evangelho, faz ainda
rejuvenescer a Igreja, renova-a continuamente e eleva-a à união consumada com o
seu Esposo. Pois o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: ‘Vem’” (cf. Ap
22,17) (LG, 4).
A Igreja desejada pelo Pai é, então, criatura do Filho,
sempre de novo vivificada pelo Espírito Santo. A leitura trinitária da comunhão
eclesial estende-se assim da história das origens à história do presente e do
futuro da Igreja: a Trindade se oferece como rica e inexaurível resposta, não
só à questão de onde vem a Igreja?,
mas também às perguntas sobre o que seja a Igreja e para onde vai. Tudo isso é
demonstrado no desenvolvimento da Lumen
Gentium.
A Igreja, estruturada sobre a exemplaridade trinitária,
deverá manter distância da uniformidade que nivela e mortifica a originalidade
e a riqueza dos dons do Espírito, e de toda contraposição lacerante que não
resolva na comunhão as tensões entre carismas e ministérios diversos, em
fecundo acolhimento recíproco das pessoas e das comunidades na unidade da fé,
da esperança e do amor.
A Trindade, fonte e imagem exemplar da Igreja, é a
própria meta: nascida do Pai, pelo Filho, no Espírito, a comunhão eclesial
deve, no Espírito e através do Filho, voltar ao Pai, até o dia em que tudo seja
submetido ao Filho e este ao Pai tudo confie, para que “Deus seja tudo em
todos” (1Cor 15,28). A Trindade é origem e pátria para a qual se encaminha o
povo peregrino: ela é o “já” e o “ainda não” da Igreja, o passado fontal e o
futuro da promissão, o início e o fim.
A destinação final à Glória, quando a comunhão dos seres
humanos para sempre se inserirá na plenitude da vida divina, funda a índole
escatológica da Igreja peregrina que o Vaticano II redescobre e repropõe à
consciência eclesial: a Igreja não encontrará conclusão no tempo presente, mas
a espera e para ela se prepara, até o dia em que o Senhor venha de novo e nele
tudo seja perfeitamente recapitulado.
A Igreja está sempre em devir, nunca concluída e por isso
semper reformanda, necessitada de
contínua purificação e de renovação perene, pela força do Espírito que nela
atua para que alcancem realização as promessas de Deus.
A Igreja ruma para a Trindade na invocação, no louvor e
no serviço, sob o peso das contradições do presente e enriquecida pelo júbilo
da promessa, apoiada na fidelidade de Deus e acrisolada sob o peso de
resistências e rejeições.
A Igreja vem da Trindade, para ela caminha e à sua imagem
se estrutura: A Igreja do Concílio é – em continuação ao testemunho da
Escritura e dos Padres – a Igreja da Trindade.
Igreja:
Mistério e Sacramento de Cristo e do Espírito
Vamos nos situar
no coração da Igreja, naquilo que constitui sua identidade específica: o
mistério da Igreja. A Constituição Dogmática Lumen Gentium inicia-se, precisamente, com o capítulo sobre “O Mistério da Igreja”. A visão de
mistério, quando retamente compreendido, une as várias dimensões da
realidade-Igreja, a social e histórica com a espiritual e transcendente.
Na Igreja antiga, com a expressão grega mistério e sua tradução latina sacramento tentou-se captar a totalidade
do cristianismo, bem como definir sua originalidade.
Um elemento comum está presente nas várias significações
de mistério-sacramento: a coexistência, sem confusão e sem separação, do dado
humano com o divino, do eterno com o temporal, do invisível com o visível. Em
razão disso, o mistério cristão nunca é apenas uma realidade inacessível e só
transcendente. Pelo mistério da Encarnação se mostrou que o transcendente tomou
forma entre nós (cf. Jo 1,9). Ao definir o que é um sacramento (mistério), o
Concílio de Trento assume a lapidar fórmula agostiniana: “a forma visível da
graça invisível”. Os mistérios cristãos são mistérios sacramentais, pois o
“sobrenatural vem realmente ligado ao natural corporal”. Numa palavra, pertence
ao mistério ser comunicado e em parte compreendido pelos seres humanos. Mas
pertence também ao mistério permanecer mistério na revelação e na compreensão.
A apropriação do mistério não se faz apenas intelectualmente; trata-se de
mergulhar numa totalidade significativa que nos ultrapassa por todos os lados,
nos penetra e nos atinge no mais profundo do coração, lá onde se decide o
sentido amoroso da existência. É mais um deixar-se tomar e conduzir do que um
investigar minucioso.
Somente a concepção moderna e intelectualista de mistério
o define como um limite à razão. O verdadeiro conceito cristão e antigo é
aquele do mistério como o ilimitado da razão, sempre de novo desafiada para
ver, deixar-se tomar e imbuir pela gratificante significação salvadora da
revelação do desígnio de Deus em favor da humanidade e de todo o mundo.
Essa
qualificação, hoje tão corrente, não o era na teologia do pré-Vaticano. Na aula
conciliar foram muitos os que rejeitaram a expressão Igreja-mistério. Diziam:
“A Igreja não é nenhum mistério! Ela é visível”. No próprio Magistério
Ordinário anterior ao Concílio a expressão é rara.
Como
é, portanto, o mistério da Igreja? Antes de tudo devemos nos conscientizar
sobre a realidade complexa da Igreja. Ela aparece, sim, visivelmente com
doutrinas, ritos, tradições, organizações religiosas, estruturas de poder
sacramental e com vinculações com determinadas culturas. Ademais, há o lado
paradoxal da Igreja, santa e pecadora, que aqui e ali, em certos meios, pode
significar escândalo.
Dentro
dessa realidade complexa e paradoxal, e não apesar dela, subsiste o mistério da
Igreja. O primeiro capítulo da Lumen
Gentium nos poderá servir de orientação. Em nenhum lugar do capítulo se
define o que se entende por mistério. Mas a exposição da matéria mostra que se
trata do mistério como o entendiam os primeiros cristãos. Fala-se mais de Deus,
da Santíssima Trindade, do Filho e do Espírito do que da Igreja. Quer dizer,
aprofundam-se aquelas realidades, verdadeiramente misteriosas, que estão nos
fundamentos da Igreja, dão significado mistérico e sacramental à Igreja e
constituem a razão de ser da Igreja.
1)
Em primeiro lugar se fala “do plano do
Pai eterno acerca da salvação universal” (LG, 2). Exatamente esse constitui o
significado primeiro de mistério. Depois, faz-se referência à missão do Filho e
do Espírito Santo (cf. LG, 3-4); e, por fim, explana-se a concepção do Reino de
Deus, do qual a Igreja é “na terra o germe e o início” (LG, 5). A Igreja é
mistério enquanto, com toda a sua realidade humana e divina, temporal e
espiritual, se ordena ao plano de Deus sobre toda a humanidade. Por isso ela
está profundamente ligada a Cristo – mistério e sacramento fontal – e ao
Espírito Santo. Ela é sinal do Reino já presente e, ao mesmo tempo, instrumento
de sua implantação na história dos seres humanos. Nela se cruzam todos esses
mistérios. Os Padres da Igreja a entendiam como o Mysterium lunae que recebe a luz do Mysterium solis que é Jesus Cristo.
2)
A Igreja é mistério porque ela realiza
de forma pública e oficial o plano de comunhão que Deus quer para toda a
humanidade. O desígnio de Deus (o Reino de Deus) é mais vasto e abrangente que
a Igreja. Mas a Igreja é parte essencial desse projeto na história, é seu ponto
de condensação consciente, é espaço de vivência intensa para aqueles que
atenderem os apelos do Espírito, do Evangelho e da própria mensagem da Igreja.
3)
A Igreja é, ademais, mistério na medida
em que nela se celebram os mistérios de nossa salvação e se realizam litúrgica
e sacramentalmente na vida dos fieis. É mistério em sentido estrito (realidade
que transcende a compreensão racional) a transubstanciação do pão e do vinho no
corpo e sangue do Senhor. Nesse pedaço de mundo material se comunica o mistério
supremo, Deus mesmo em sua divindade para ser alimento dos que peregrinam na
fé. Os sacramentos sempre são gestos que Cristo faz mediante o corpo da Igreja
em benefício do Povo de Deus.
4)
A Igreja é particularmente mistério pela
união que nela se verifica entre o histórico-social (sempre sujeito às
degenerações) com o espiritual-divino. Não basta dizer que a Igreja é mistério
porque nela atuam Deus e, de forma única, Jesus Cristo e o Espírito Santo. Eles
atuam sim, mas unidos à materialidade institucional da Igreja. Aqui reside o
específico do mistério da Igreja: a coexistência, numa mesma realidade-Igreja,
dos dois elementos, do divino e do humano. Bem o enfatizava o Vaticano II: na
Igreja simultaneamente visível e espiritual, os elementos “não devem ser
considerados duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se
conjuga o elemento humano e divino” (LG, 8). A Igreja apresenta-se, dessa
forma, como o grande sacramento da salvação universal, derivado do sacramento frontal
que é Jesus Cristo.
Padre Flávio
Luís
Nenhum comentário:
Postar um comentário