quarta-feira, 10 de setembro de 2014

FORMAÇÃO PARA MINISTROS EXTRAORDINÁRIO DA PALAVRA

DIOCESE DE BARRA DO PIRAI – VOLTA REDONDA
PARÓQUIA SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA – BARRA MANSA
FORMAÇÃO PARA MINISTROS EXTRAORDINÁRIO DA PALAVRA
4.º ENCONTRO; TEMA: A Missão da Igreja: Perspectivas Eclesiológicas
ASSESSOR: Pe. FLÁVIO LUÍS
DATA: 29/08/2014                         LOCAL: SALÃO PAROQUIAL                        HORÁRIO 19:30Hs – 21:00Hs

A Missão da Igreja: Perspectivas Eclesiológicas
É fato a afirmação de que vivemos um tempo de profundas mudanças. Assim, é justamente diante do contexto da grande e radical mudança de época, que a Igreja deve olhar-se a si mesma com olhar crítico e de esperança, para trazer à luz pensamentos, práticas e estruturas que apontam para uma necessidade de conversão.
A Igreja é chamada a situar-se no novo contexto e assumir os novos desafios oriundos dele. Os desafios são inúmeros. Isto obriga a Igreja a vir a ter uma constante atitude de humildade e a reconhecer a complexidade da realidade sem se esquivar dela, por mais dura e desconcertante que seja.

1.      A teologia pós-conciliar insiste no fato de que a Igreja não deve mais configurar-se como uma instituição baseada sobre um eixo de contraposição clero e laicato – tributário de uma eclesiologia que se funda na distinção e separação de duas categorias desiguais de cristãos –. O Concílio Vaticano II afirma que todos pertencemos ao único Povo de Deus e dentro dele temos a mesma dignidade, o mesmo valor aos olhos do Senhor e idêntica vocação à santidade. É preciso caminhar na superação da distância entre os membros do corpo do Senhor para que a comunhão na Igreja seja cada vez mais uma realidade, e reconhecer que há uma Igreja toda ela co-responsável, dada a radical igualdade em dignidade de todos os ministérios. A Conferência de Aparecida valoriza o laicato tanto na inserção no mundo (DAp, 210), quanto no interior da Igreja (DAp, 211), destacando sua importância como elo de ligação entre a Igreja e a sociedade (DAp, 497a). Esta proposta insiste no fato de que a Igreja se encontra dentro do mundo e, por isso, deve participar das realizações e das dificuldades do ser humano moderno. Esta consciência permitiu à Igreja descobrir novos campos pastorais e novos temas para sua reflexão, como por exemplo, a preocupação com a dignidade da pessoa humana e o aspecto antropológico da realidade. Onde a vida estiver fragilizada, ameaçada, a Igreja latino-americana é chamada a ser sacramento de amor, solidariedade e justiça entre os povos. 

2.      O cristianismo se reporta a Jesus de Nazaré e este proclama que veio para que todos tenham vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10). Isto não pode ser negado. E quando a realidade se apresenta em contradição com a promessa, não basta apenas denunciar e condenar e nem apenas indicar uma nova utopia, mesmo quando necessária para manter acessa a esperança. É preciso estar presente e agir. Eis o grande desafio que se apresenta: voltar à Igreja que Jesus queria e os apóstolos nos deixaram (cf. DAp, 31). Uma Igreja que assume a realidade com seus clamores e suas debilidades. Fundada na Palavra e no Espírito para viver perto do povo. Sacramento libertador do Reino. Comunidade de Deus sem fronteiras. Orante, fraterna e solidária. Ministerial, dialogante, profética e pobre. Respeitosa da pluralidade. Que valoriza os dons e ministérios que cada um recebeu do Espírito. A Igreja hoje, mais do que nunca, precisa descentrar-se de suas questões exclusivamente internas e sintonizar-se com as grandes aspirações da humanidade. Desafios tais como processos de exclusão, urgência de uma nova ordem internacional, direitos humanos, emancipação da mulher, ecologia humana, etc., dizem respeito também ao Evangelho. A fraternidade universal e uma humanidade “com vida em abundância” é a vocação missionária à qual o cristianismo está chamado a ser sinal e sacramento.

3.      A missão da Igreja é evangelizar (cf. DAp, 30-32). Ela busca cumprir sua missão seguindo os passos de Jesus e adotando suas atitudes, ensinando o caminho da vocação de discípulos missionários. Este processo mostra que não se pode ser cristão fora de uma comunidade. É por meio das comunidades que Jesus Cristo se torna presente e atualiza sua missão salvífica. A Igreja da América Latina, no interior de um mundo marcado pelo individualismo com a hegemonia do neoliberalismo, é chamada a continuar contribuindo com a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, fará isso com a criação e fortalecimento de comunidades eclesiais consequentes com a prática histórica de Jesus de Nazaré, assumindo a opção pelos pobres e excluídos, uma vez que “toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendental do ser humano e por todas as suas necessidades concretas, para que todos alcancem a plenitude que Jesus Cristo oferece” (DAp, 176).

4.      A Igreja, no contexto atual, tem a responsabilidade de apresentar, de modo claro e significativo quem é o Deus em quem acredita e sabe ser o sentido único para a vida. É por isso que a Conferência de Aparecida convoca todos os seus membros a se pôr “em estado permanente de missão” (DAp, 551) para, justamente, tornar realidade esta proposta.
Contudo, todo esse grande chamado à missão só terá sentido se houver um comprometimento em favor da vida em todos os seus âmbitos e se a Igreja se esforçar por assumir visivelmente o processo de conversão pastoral em suas instâncias pessoais, comunitárias e institucionais. Isso implica, entre outras coisas, criar dentro dela espaços de maior autonomia para as subjetividades e de acolhida das diferenças; promover com firme decisão as condições adequadas de missão permanente, especialmente nas relações e espaços intereclesiais comunitários, para que a Igreja possa dar um testemunho cristão digno de fé.
A conversão pastoral solicitada por Aparecida aponta para “a setorização (das paróquias) em unidades territoriais menores, com equipes próprias de animação e de coordenação que permitam maior proximidade com pessoas e grupos que vivem na região” (DAp, 372). É urgente fazer da paróquia uma rede de comunidades, como o caminho fundamental para a ação evangelizadora em nossos dias (cf. DAp, 99e; 170-180). Na América Latina e no Caribe, referencial de comunidade, estruturalmente com espaço para a autonomia das subjetividades e das diferenças, de tamanho humano, são as Comunidades Eclesiais de Base que, como ressalta Aparecida, retomam o que há de mais antigo na Igreja, a inspiração das primeiras comunidades cristãs; ao mesmo tempo, representam o que há de mais novo, isto é, as orientações do Vaticano II e das Assembleias Gerais do CELAM (cf. DAp, 178). Todavia, como resposta às exigências da evangelização junto com as CEB’s existe outras formas de pequenas comunidades (cf. DAp, 180). Neste reconhecimento, vários desafios são apresentados diante do fenômeno das novas comunidades. Existem inúmeras outras tentativas para concretizar este ideal. São iniciativas que giram em torno de movimentos, grupos de vida, de oração e de reflexão da Palavra de Deus. Atualmente, contata-se e se reflete a realidade de comunidades de adesão afetiva ou por interesse e não tanto em função do território, comunidades marcadas pela fluidez de vínculos e pelos ajuntamentos pontuais. Esta mudança é grande, urgente e mesmo irreversível (cf. DAp, 365).

5.      Um desafio complexo que se apresenta é a renovação da instituição. As estruturas são um elemento fundamental da visibilidade da Igreja, pois afetam decisivamente seu caráter de sinal ou sacramento. É preciso analisar até que ponto sua visibilização institucional, a configuração histórica, transparece a experiência originária no contexto atual, dando suporte a uma missão e identidade renovadas.  Das estruturas em função da missão, deriva uma ecclesia semper reformanda (cf. LG, 8; GS, 43). A Igreja precisa ser flexível em suas estruturas, condição essencial para caminhar acompanhando o dinamismo do Espírito e da história.
O atual momento histórico-social em que a Igreja está inserida, a atual conjuntura, nos convida a ultrapassar o horizonte da uniformidade pastoral e ingressar, com maior empenho, numa pastoral diversificada e, por certo, articulada, sem a qual perderemos muito de nossa força testemunhal, interpeladora e propositiva em vista do Reino de Deus. Refletindo sobre o perfil do agir missionário, a Conferência de Aparecida assume com toda clareza a insuficiência da chamada pastoral de conservação (DAp, 370). Chegando até a afirmar que algumas formas de fazer pastoral, formas que até deram certo em outras épocas, por não mais responderem aos anseios de nosso tempo, tornam-se causa de abandono da Igreja (DAp, 225). Daí o imperativo de uma corajosa busca de novos caminhos para evangelizar e formar comunidades, coragem que exige até mesmo o abandono de “estruturas ultrapassadas que já não favoreçam a transmissão da fé” (DAp, 365-366).

A fé cristã nos introduz no seio do Mistério Pascal, marcado pelo êxodo e a exigência do nascer de novo, em meio à realidade de um mundo, cada vez mais dinâmico, complexo e plural. Assim, é decisivo, para o atual momento histórico, discernir os desafios de uma mudança de época que já se está processando entre nós e esboçar como Igreja uma resposta profética, fiel e criativa. O que teremos que fazer agora? Primeiro: superar confusões, medos e desconfianças estéreis. Segundo: formar os sujeitos (pessoas e comunidades) capazes de reconstruir a identidade da Igreja. Os textos e a teologia não mudam a Igreja. Esta se transforma quando existem mestres e profetas, ministros e leigos, movimentos e organizações, capazes de reconstruir estruturas e ministérios novos, novos modelos de Igreja e novos espaços onde seja possível uma profunda autocrítica da Igreja e uma reprogramação de novas atividades missionárias. O que está em jogo é a “vida de nossos povos”, que se encontra ameaçada e ferida, e o cumprimento do mandato do Senhor Jesus de evangelizar. Por isso, urge uma autêntica e profunda conversão pastoral que possibilite encontrar caminhos de abertura ministerial e compromisso profético para corresponder às necessidades da Igreja servidora em estado permanente de missão que defende e acolhe a vida que o Espírito faz nascer em nosso mundo.



IGREJA – MISTÉRIO E SACRAMENTO: A ECLESIOLOGIA TRINITÁRIA DO VATICANO II
            A chave para a compreensão da mensagem eclesiológica do Concílio, reside na leitura trinitária da Igreja: “A Igreja universal aparece como o ‘povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo’”.
            A Igreja, tal qual apresentada no capítulo I da Lumen Gentium, vem da Trindade, estrutura-se à imagem da Trindade e se dirige para o acabamento trinitário da história. Vindo do alto como o seu Senhor, plasmada pelo alto e a caminho dele, enquanto “o Reino de Cristo já presente em mistério” (LG, 3), a Igreja é na história, não sendo, porém, redutível às coordenadas da história, do visível e do disponível.
            Esta intuição fundamental, extraída do testemunho da Escritura e da reflexão de fé dos Padres, teve desdobramentos na constituição De Ecclesia (Sobre a Igreja), que examina subsequentemente a origem, o presente e o futuro da Igreja à luz da Trindade Santa.
- De onde vem a Igreja? O que é?  Para onde vai? > são as três perguntas-chaves, às quais o Concílio quer responder a partir da origem, da forma e da destinação trinitária da comunidade eclesial.
            A origem trinitária da Igreja é apresentada quando se descreve a economia da salvação: o fim do desígnio livre, gratuito e insondável do Pai é a elevação dos seres humanos à participação na vida divina, na comunhão da Trindade: “O eterno Pai, por decisão inteiramente livre e insondável da sua bondade e sabedoria, criou o universo, decretou elevar os homens à participação da sua vida divina (...)” (LG, 2).
            A unidade dos seres humanos com Deus e entre si, adquirida pela obra reconciliadora do Verbo Encarnado, atua-se historicamente na Igreja e se consumará na glória: “Aos que acreditam em Cristo quis convocá-los na santa Igreja, a qual, já prefigurada desde a origem do mundo e preparada admiravelmente na história do povo de Israel e na antiga aliança, e instituída ‘nos últimos tempos’, foi manifestada pela efusão do Espírito, e será consumada em glória no fim dos séculos. Então, como se lê nos santos Padres, todos os justos, a começar por Adão, ‘desde o justo Abel até ao último eleito’, serão congregados na Igreja universal junto do Pai” (LG, 2).
            Aqui se entende a Igreja em sentido amplo, segundo um universalismo de origem paulina e muito difundido no pensamento patrístico. Não se quer negar a necessidade da salvação. Quer-se afirmar que ela, em sua forma visível e histórica, é o sacramento – isto é, o sinal e o instrumento escolhido – do desígnio salvífico de unidade, que vai da criação à parusia.
            A Igreja é, então, a participação histórica na unidade trinitária, a realização iniciada sob o véu dos sinais da salvação que brota da iniciativa divina, mistério ou sacramento da “íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG, 1).
            O desígnio divino de unidade manifestou-se na plenitude dos tempos com a missão e a obra do Filho: Ele inaugurou na terra o Reino dos céus, do qual a Igreja é a presença “in mysterio”, isto é, o sinal e o germe que, ao mesmo tempo, revela e esconde, crescente graça à potência de Deus em direção ao acabamento (cf. LG, 3). Este começo e crescimento são ambos significados pelo sangue e pela água que manaram do lado aberto de Jesus crucificado (cf. Jo 19,34); e são preanunciados pelas palavras do Senhor acerca de sua morte na cruz: “E quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Na água e no sangue que jorram do Crucificado, os Padres viram os sacramentos do batismo e da eucaristia: é a ideia de que a estrutura sacramental da Igreja deriva do Cristo pascal.
            Se ao centro do desígnio do Pai está a missão do Filho, indissoluvelmente ligada à Igreja, do mesmo modo, ao centro da missão do Filho está o seu mistério pascal, do qual nasce a Igreja como comunidade dos reconciliados em Cristo com Deus, e entre si. Esse mistério não é mero acontecimento do passado: torna-se presente no memorial da eucaristia, para reconciliar os seres humanos no hoje da própria história. A Igreja, que celebra a eucaristia, dela nasce como corpo de Cristo na história.
            A missão do Filho culmina com o envio do Espírito, que torna possível o acesso ao Pai por meio do Filho. Assim como o Pai, através do Filho, veio ao ser humano no Espírito, o ser humano pode, doravante, no Espírito e pelo Filho, ascender ao Pai. O movimento de descensão possibilita o de ascensão, num circuito de unidade, cuja fase eterna é a Trindade e cuja fase temporal é a Igreja.
            O Espírito dá a vida. O Espírito “habita na Igreja e nos corações dos fieis, como num templo; neles ora e dá testemunho de que são filhos adotivos. Leva a Igreja ao conhecimento da verdade total, unifica-a na comunhão e no ministério, dota-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos, com os quais a dirige e embeleza. Com a força do evangelho, faz ainda rejuvenescer a Igreja, renova-a continuamente e eleva-a à união consumada com o seu Esposo. Pois o Espírito e a Esposa dizem ao Senhor Jesus: ‘Vem’” (cf. Ap 22,17) (LG, 4).
            A Igreja desejada pelo Pai é, então, criatura do Filho, sempre de novo vivificada pelo Espírito Santo. A leitura trinitária da comunhão eclesial estende-se assim da história das origens à história do presente e do futuro da Igreja: a Trindade se oferece como rica e inexaurível resposta, não só à questão de onde vem a Igreja?, mas também às perguntas sobre o que seja a Igreja e para onde vai. Tudo isso é demonstrado no desenvolvimento da Lumen Gentium.
            A Igreja, estruturada sobre a exemplaridade trinitária, deverá manter distância da uniformidade que nivela e mortifica a originalidade e a riqueza dos dons do Espírito, e de toda contraposição lacerante que não resolva na comunhão as tensões entre carismas e ministérios diversos, em fecundo acolhimento recíproco das pessoas e das comunidades na unidade da fé, da esperança e do amor.
            A Trindade, fonte e imagem exemplar da Igreja, é a própria meta: nascida do Pai, pelo Filho, no Espírito, a comunhão eclesial deve, no Espírito e através do Filho, voltar ao Pai, até o dia em que tudo seja submetido ao Filho e este ao Pai tudo confie, para que “Deus seja tudo em todos” (1Cor 15,28). A Trindade é origem e pátria para a qual se encaminha o povo peregrino: ela é o “já” e o “ainda não” da Igreja, o passado fontal e o futuro da promissão, o início e o fim.       
            A destinação final à Glória, quando a comunhão dos seres humanos para sempre se inserirá na plenitude da vida divina, funda a índole escatológica da Igreja peregrina que o Vaticano II redescobre e repropõe à consciência eclesial: a Igreja não encontrará conclusão no tempo presente, mas a espera e para ela se prepara, até o dia em que o Senhor venha de novo e nele tudo seja perfeitamente recapitulado.
            A Igreja está sempre em devir, nunca concluída e por isso semper reformanda, necessitada de contínua purificação e de renovação perene, pela força do Espírito que nela atua para que alcancem realização as promessas de Deus.
            A Igreja ruma para a Trindade na invocação, no louvor e no serviço, sob o peso das contradições do presente e enriquecida pelo júbilo da promessa, apoiada na fidelidade de Deus e acrisolada sob o peso de resistências e rejeições.
            A Igreja vem da Trindade, para ela caminha e à sua imagem se estrutura: A Igreja do Concílio é – em continuação ao testemunho da Escritura e dos Padres – a Igreja da Trindade.
Igreja: Mistério e Sacramento de Cristo e do Espírito
            Vamos nos situar no coração da Igreja, naquilo que constitui sua identidade específica: o mistério da Igreja. A Constituição Dogmática Lumen Gentium inicia-se, precisamente, com o capítulo sobre “O Mistério da Igreja”. A visão de mistério, quando retamente compreendido, une as várias dimensões da realidade-Igreja, a social e histórica com a espiritual e transcendente.
            Na Igreja antiga, com a expressão grega mistério e sua tradução latina sacramento tentou-se captar a totalidade do cristianismo, bem como definir sua originalidade.
            Um elemento comum está presente nas várias significações de mistério-sacramento: a coexistência, sem confusão e sem separação, do dado humano com o divino, do eterno com o temporal, do invisível com o visível. Em razão disso, o mistério cristão nunca é apenas uma realidade inacessível e só transcendente. Pelo mistério da Encarnação se mostrou que o transcendente tomou forma entre nós (cf. Jo 1,9). Ao definir o que é um sacramento (mistério), o Concílio de Trento assume a lapidar fórmula agostiniana: “a forma visível da graça invisível”. Os mistérios cristãos são mistérios sacramentais, pois o “sobrenatural vem realmente ligado ao natural corporal”. Numa palavra, pertence ao mistério ser comunicado e em parte compreendido pelos seres humanos. Mas pertence também ao mistério permanecer mistério na revelação e na compreensão. A apropriação do mistério não se faz apenas intelectualmente; trata-se de mergulhar numa totalidade significativa que nos ultrapassa por todos os lados, nos penetra e nos atinge no mais profundo do coração, lá onde se decide o sentido amoroso da existência. É mais um deixar-se tomar e conduzir do que um investigar minucioso.
            Somente a concepção moderna e intelectualista de mistério o define como um limite à razão. O verdadeiro conceito cristão e antigo é aquele do mistério como o ilimitado da razão, sempre de novo desafiada para ver, deixar-se tomar e imbuir pela gratificante significação salvadora da revelação do desígnio de Deus em favor da humanidade e de todo o mundo.  
Essa qualificação, hoje tão corrente, não o era na teologia do pré-Vaticano. Na aula conciliar foram muitos os que rejeitaram a expressão Igreja-mistério. Diziam: “A Igreja não é nenhum mistério! Ela é visível”. No próprio Magistério Ordinário anterior ao Concílio a expressão é rara.
Como é, portanto, o mistério da Igreja? Antes de tudo devemos nos conscientizar sobre a realidade complexa da Igreja. Ela aparece, sim, visivelmente com doutrinas, ritos, tradições, organizações religiosas, estruturas de poder sacramental e com vinculações com determinadas culturas. Ademais, há o lado paradoxal da Igreja, santa e pecadora, que aqui e ali, em certos meios, pode significar escândalo.
Dentro dessa realidade complexa e paradoxal, e não apesar dela, subsiste o mistério da Igreja. O primeiro capítulo da Lumen Gentium nos poderá servir de orientação. Em nenhum lugar do capítulo se define o que se entende por mistério. Mas a exposição da matéria mostra que se trata do mistério como o entendiam os primeiros cristãos. Fala-se mais de Deus, da Santíssima Trindade, do Filho e do Espírito do que da Igreja. Quer dizer, aprofundam-se aquelas realidades, verdadeiramente misteriosas, que estão nos fundamentos da Igreja, dão significado mistérico e sacramental à Igreja e constituem a razão de ser da Igreja.
1)     Em primeiro lugar se fala “do plano do Pai eterno acerca da salvação universal” (LG, 2). Exatamente esse constitui o significado primeiro de mistério. Depois, faz-se referência à missão do Filho e do Espírito Santo (cf. LG, 3-4); e, por fim, explana-se a concepção do Reino de Deus, do qual a Igreja é “na terra o germe e o início” (LG, 5). A Igreja é mistério enquanto, com toda a sua realidade humana e divina, temporal e espiritual, se ordena ao plano de Deus sobre toda a humanidade. Por isso ela está profundamente ligada a Cristo – mistério e sacramento fontal – e ao Espírito Santo. Ela é sinal do Reino já presente e, ao mesmo tempo, instrumento de sua implantação na história dos seres humanos. Nela se cruzam todos esses mistérios. Os Padres da Igreja a entendiam como o Mysterium lunae que recebe a luz do Mysterium solis que é Jesus Cristo.
2)     A Igreja é mistério porque ela realiza de forma pública e oficial o plano de comunhão que Deus quer para toda a humanidade. O desígnio de Deus (o Reino de Deus) é mais vasto e abrangente que a Igreja. Mas a Igreja é parte essencial desse projeto na história, é seu ponto de condensação consciente, é espaço de vivência intensa para aqueles que atenderem os apelos do Espírito, do Evangelho e da própria mensagem da Igreja.
3)     A Igreja é, ademais, mistério na medida em que nela se celebram os mistérios de nossa salvação e se realizam litúrgica e sacramentalmente na vida dos fieis. É mistério em sentido estrito (realidade que transcende a compreensão racional) a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e sangue do Senhor. Nesse pedaço de mundo material se comunica o mistério supremo, Deus mesmo em sua divindade para ser alimento dos que peregrinam na fé. Os sacramentos sempre são gestos que Cristo faz mediante o corpo da Igreja em benefício do Povo de Deus.
4)     A Igreja é particularmente mistério pela união que nela se verifica entre o histórico-social (sempre sujeito às degenerações) com o espiritual-divino. Não basta dizer que a Igreja é mistério porque nela atuam Deus e, de forma única, Jesus Cristo e o Espírito Santo. Eles atuam sim, mas unidos à materialidade institucional da Igreja. Aqui reside o específico do mistério da Igreja: a coexistência, numa mesma realidade-Igreja, dos dois elementos, do divino e do humano. Bem o enfatizava o Vaticano II: na Igreja simultaneamente visível e espiritual, os elementos “não devem ser considerados duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se conjuga o elemento humano e divino” (LG, 8). A Igreja apresenta-se, dessa forma, como o grande sacramento da salvação universal, derivado do sacramento frontal que é Jesus Cristo.
Padre Flávio Luís 


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