O
homem do saco
Final dos anos 1980. Reciclagem era
uma dessas coisas que se ouvia ao longe. Era a minha missão. Como começar, por
onde começar?
-Já começou há muito tempo, me disse
o padre sentado à minha frente, é questão de enxergar!
No centro da cidade uma guerra corria
solta. As empreiteiras de coleta de lixo reclamavam que eles roubavam seu
produto; os munícipes se queixavam da sujeira que eles deixavam; eles se
queixavam que os fiscais não os deixavam trabalhar; o administrador regional se
queixava, os empresários se queixavam, os transeuntes se queixavam, os
proprietários das lojas se queixavam. Mas quem eram eles?
Era isso que o padre queria me
ensinar a enxergar: eram os carroceiros!
- Os carroceiros? Perguntei apavorado
internamente.
Cresci ameaçado pelo “homem do saco”
que viria me pegar se eu não me comportasse; cresci ameaçado de que se não
estudasse iria puxar carroça; o carroceiro era algo sujo, maltrapilho,
perigoso, para quem é melhor nem olhar. Distância!
E agora me vem esse padre dizendo que
precisamos inseri-lo na questão da reciclagem…
– Claro, eles fazem isso todo o
tempo, é questão de adaptá-los, e não só eles, a população, a administração, os
empresários…
Ficamos combinados assim: enquanto o
padre iria tratar de organizá-los em uma cooperativa, eu me entenderia com as
autoridades das áreas críticas. Duro seria reunir todos. Meus emissários
entregavam um papelzinho a cada um dos carroceiros com o endereço do
departamento e um horário e tentava explicar que seria uma reunião para tentar
viabilizar o trabalho deles.
Desconfiança total, credibilidade
zero; ou quase zero. Vieram 3 mulheres, mas não entraram. Ficaram na esquina
avaliando o movimento.
Segunda tentativa: quinze carroças na
esquina. Transportei a reunião: fomos eu, o padre, o administrador da regional
e uma garoa fina, para a esquina explicar do que se tratava. Semana seguinte
123 carrocinhas estacionadas no pátio do departamento, os homens e mulheres “do
saco” reunidos no auditório, sendo ouvidos: suas histórias, suas vidas, seus
problemas e acima de tudo suas soluções. Pude compreender a lógica e a
logística daquela “atividade empresarial” que rolava embaixo dos nossos
narizes, e que, por uma questão cultural, nos tornamos incapazes de reconhecer.
Pude enxergar essas pessoas por trás da imagem estereotipada do “homem do
saco”.
E eles também ouviram: que as pessoas
se incomodavam com a forma como eles abriam sacos nas calçadas à procura de
papel branco e os largavam de qualquer jeito, que eles faziam pilhas de
sacos para a posterior passagem de seus veículos, que os caminhões
“oficiais” encontravam essa situação de desarrumação geral e não conseguiam
manter o ritmo normal de retirada, que os varredores tinham muito mais trabalho
com o lixo espalhado, etc., etc.
Dessas reuniões saíram: uma
cooperativa para “catadores”, inclusive com direito de uso de determinados
terrenos da prefeitura; um remanejamento no horário de coleta no centro da
cidade, de forma a deixar uma brecha de tempo para a coleta seletiva de papel; um
regulamento de forma de conduta para as carroças, incluindo identificação,
horário, utensílios para limpeza, rotas de percurso e pontos de acumulação.
Toneladas de lixo que se pagava para
retirar, transportar e destinar, estavam sendo recicladas gratuitamente.
Centenas de pessoas de verdade emergiram por trás das fantasias da minha
ignorância.
– Obrigado, padre!
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