domingo, 16 de junho de 2013

O homem do saco - Universo Jatoba

O homem do saco - Universo Jatoba
O homem do saco

18.04.2013 - Por Pagan Senior - 

Final dos anos 1980. Reciclagem era uma dessas coisas que se ouvia ao longe. Era a minha missão. Como começar, por onde começar?
-Já começou há muito tempo, me disse o padre sentado à minha frente, é questão de enxergar!
No centro da cidade uma guerra corria solta. As empreiteiras de coleta de lixo reclamavam que eles roubavam seu produto; os munícipes se queixavam da sujeira que eles deixavam; eles se queixavam que os fiscais não os deixavam trabalhar; o administrador regional se queixava, os empresários se queixavam, os transeuntes se queixavam, os proprietários das lojas se queixavam. Mas quem eram eles?
Era isso que o padre queria me ensinar a enxergar: eram os carroceiros!
- Os carroceiros? Perguntei apavorado internamente.
Cresci ameaçado pelo “homem do saco” que viria me pegar se eu não me comportasse; cresci ameaçado de que se não estudasse iria puxar carroça; o carroceiro era algo sujo, maltrapilho, perigoso, para quem é melhor nem olhar. Distância!
E agora me vem esse padre dizendo que precisamos inseri-lo na questão da reciclagem…
– Claro, eles fazem isso todo o tempo, é questão de adaptá-los, e não só eles, a população, a administração, os empresários…
Ficamos combinados assim: enquanto o padre iria tratar de organizá-los em uma cooperativa, eu me entenderia com as autoridades das áreas críticas. Duro seria reunir todos. Meus emissários entregavam um papelzinho a cada um dos carroceiros com o endereço do departamento e um horário e tentava explicar que seria uma reunião para tentar viabilizar o trabalho deles.
Desconfiança total, credibilidade zero; ou quase zero. Vieram 3 mulheres, mas não entraram. Ficaram na esquina avaliando o movimento.
Segunda tentativa: quinze carroças na esquina. Transportei a reunião: fomos eu, o padre, o administrador da regional e uma garoa fina, para a esquina explicar do que se tratava. Semana seguinte 123 carrocinhas estacionadas no pátio do departamento, os homens e mulheres “do saco” reunidos no auditório, sendo ouvidos: suas histórias, suas vidas, seus problemas e acima de tudo suas soluções. Pude compreender a lógica e a logística daquela “atividade empresarial” que rolava embaixo dos nossos narizes, e que, por uma questão cultural, nos tornamos incapazes de reconhecer. Pude enxergar essas pessoas por trás da imagem estereotipada do “homem do saco”.
E eles também ouviram: que as pessoas se incomodavam com a forma como eles abriam sacos nas calçadas à procura de papel branco  e os largavam de qualquer jeito, que eles faziam pilhas de sacos  para a posterior passagem de seus veículos, que os caminhões “oficiais” encontravam essa situação de desarrumação geral e não conseguiam manter o ritmo normal de retirada, que os varredores tinham muito mais trabalho com o lixo espalhado, etc., etc.
Dessas reuniões saíram: uma cooperativa para “catadores”, inclusive com direito de uso de determinados terrenos da prefeitura; um remanejamento no horário de coleta no centro da cidade, de forma a deixar uma brecha de tempo para a coleta seletiva de papel; um regulamento de forma de conduta para as carroças, incluindo identificação, horário, utensílios para limpeza, rotas de percurso e pontos de acumulação.
Toneladas de lixo que se pagava para retirar, transportar e destinar, estavam sendo recicladas gratuitamente. Centenas de pessoas de verdade emergiram por trás das fantasias da minha ignorância.
– Obrigado, padre!


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